domingo, 14 de outubro de 2012

A Era das Boas Práticas de Farmacovigilância (BPFV)





Introdução


Nas últimas quatro décadas, tem sido freqüente o debate sobre o risco potencial dos medicamentos à saúde humana, temática que parece não ter assumido contornos definitivos. No princípio, a preocupação era com a vigilância dos medicamentos  recém-introduzidos no mercado, na expectativa de identificar eventuais agravos por eles provocados à saúde humana, que não foram reconhecidos durante a fase de ensaios clínicos. 

Nas últimas décadas houve iniciativas isoladas, conjuntas, regionais e globais para se instituir um efetivo mecanismo que enfoque o desenvolvimento de uma metodologia apropriada para a elaboração dos relatórios de farmacovigilância. Iniciativas isoladas, não estabelecidas em regulamentação bem estruturada, sugeriam a compilação de resultados, a divulgação de dados estatísticos, a detecção de reações e eventos adversos não conhecidos, de interação entre medicamentos e com alimentos, a quantificação de efeitos conhecidos e a avaliação do papel dos  fatores que influem sobre as reações adversas a fármacos e medicamentos. 

Surgia a era da farmacovigilância, neologismo para vigilância póscomercialização de medicamentos, que promoveu modificações significativas no eixo medicina-indústria farmacêutica-farmácia. Mesmo reconhecendo-se os benefícios que os medicamentos promovem para os seres humanos, que se refletem na qualidade de vida e no aumento da longevidade, vários fatores de natureza econômica, legislativa, política, sociológica, normativa, científica e tecnológica provocam significativas alterações nas práticas ética e farmacêutica e, muito especialmente, no setor industrial farmacêutico mundial, em velocidade e extensão sem precedentes. De um modo geral, o indivíduo é altamente consciente do valor dos medicamentos e a população considera os serviços médicos da maior qualidade como um direito, antes de considerá-los um privilégio. Políticos reconhecem o apelo do eleitorado para programas que assegurarão serviços de saúde de alta qualidade para as crianças, para os idosos e para as classes econômicas de baixo poder aquisitivo.

Diante desse quadro, espera-se que a sociedade, como um todo e em seus segmentos especializados, avalie permanentemente as novas descobertas, reavaliando as substâncias e os produtos consagrados, visando encontrar novas aplicações, aperfeiçoar a prática existente ou identificar algum novo risco potencial, bem como tomar medidas contingentes para reduzir seu impacto, se e quando ocorrerem. 

Os relatos de riscos potenciais, quer sejam de supostas reações adversas a medicamentos ou de eventos adversos ou de queixas técnicas levam:
•    Ao aperfeiçoamento das práticas clínicas;
•    À identificação de novas indicações terapêuticas;
•    À elaboração de informações de advertências aos clínicos e pacientes;
•    Às pesquisas de ações que impedem ou minimizem os efeitos das reações adversas desconhecidas ou dos eventos adversos, bem como aqueles conhecidos, que constituem o objeto principal da farmacovigilância.

A farmacovigilância, em seu amplo sentido, engloba os princípios básicos da iatrogenia, da teratogênese, das reações adversas imprevistas, das não-conformidades técnicas, das interações medicamentosas, dos procedimentos relacionados à dispensação e à administração de medicamentos, da adesão do paciente e cuidadores à prescrição médica, do diagnóstico da enfermidade e, inclusive, dos atos inescrupulosos relacionados à falsificação de medicamentos.

A concepção atual da farmacovigilâcia remete-a para a necessidade de melhorar a saúde pública e a segurança em relação à utilização de medicamentos. Suas ações estão voltadas para ampliar o cuidado com o paciente e a segurança em relação à utilização de medicamentos e a todas as intervenções médicas e paramédicas. É seu principal objetivo estabelecer mecanismos que  contribuam para a avaliação dos benefícios, danos, efetividade, qualidade e riscos dos medicamentos, incentivando sua utilização de forma segura, racional e mais efetiva.

No contexto global, se reconhece que a existência de sistemas internacionais de referência em farmacovigilância não impede que os países desenvolvam seus próprios sistemas, considerando as características específicas dos mesmos, especialmente de sua população, dos sistemas de saúde e dos produtos. A regulamentação da farmacovigilância, com força de lei, como a inserida na RDC nº 4 de 2009, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), inicia a era das Boas Práticas de Farmacovigilância (BPFV) no Brasil.

Histórico

A farmacovigilância se originou da iatrogenia, disciplina que estuda as doenças provocadas pelos medicamentos. Os primeiros estudos sobre a importância de se avaliar o potencial efeito nocivo dos medicamentos, com base no enfoque que se atribui à atual farmacovigilância, foram realizados por Schimmel e Cluff, em 1964, os quais relataram que cerca de 10% dos pacientes hospitalizados apresentaram reações adversas a medicamentos prescritos. Estudos e pesquisas realizadas por Carbonis, Leape e colaboradores revelaram índices que variaram de 0,8 a 8,6% de pacientes hospitalizados que apresentaram efeitos adversos provocados por medicamentos prescritos. Outros estudos realizados por Lazarou e colaboradores revelaram incidência global de efeitos adversos graves a medicamentos na ordem de 6,7%, sendo 0,32% fatais.

Em 1968 foi instituído o Projeto de Pesquisa Piloto para a Monitoração Internacional de Medicamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS). Seu propósito era desenvolver um sistema, aplicável na esfera internacional, para identificar previamente efeitos adversos a medicamentos desconhecidos ou pouco estudados. O projeto piloto estendeu seu âmbito de abrangência, compondo o Programa Internacional de Monitoração de Medicamentos da OMS, ora coordenado pelo The Uppsala Monitoring Centre (UMC), em Uppsala, Suécia, com supervisão de um comitê internacional. O programa expandiu-se para incluir mais de 95 países-membros. Na América Latina, a Costa Rica, em 1991, foi o primeiro país a aderir a esse programa, sucedido por Argentina, Venezuela, Chile e México. O Brasil participa deste programa desde 2001. Desta forma, desenvolveu-se a consciência de que um sistema confiável de farmacovigilância era necessário à saúde pública e ao uso racional e seguro de medicamentos. As atividades de farmacovigilância também evoluíram como atividades regulatórias. No início da década de 1980, em colaboração intensa com a OMS, o Conselho para Organizações Internacionais das Ciências Médicas - The Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS) - lançou seu programa de desenvolvimento e uso de medicamentos.

A adoção de muitas das recomendações da OMS pela Conferência Internacional sobre Harmonização - International Conference on Harmonization (ICH) -,na década de 1990, provocou um impacto notável na regulação internacional de medicamentos.

Bases da farmacovigilância

Até o momento não há uma definição única de farmacovigilância. Em 2002, a OMS definiu farmacovigilância como a ciência relativa à detecção, avaliação, compreensão e prevenção de efeitos ou problemas quaisquer relacionados a medicamentos. Esta definição é adotada pela ANVISA em seus regulamentos.

Segundo a OMS, as bases da farmacovigilância são a Reação Adversa a Medicamento (RAM) e os Eventos Adversos (EA). Uma RAM constitui uma resposta a um medicamento que é nocivo e não-intencional e ocorre em doses normalmente utilizadas para profilaxia, diagnóstico ou tratamento de doenças, ou para a modificação de uma função fisiológica. Superdosagem, abuso/dependência e interação medicamentosa podem ser consideradas RAM.

Muitas autoridades dedicam-se à tarefa de classificar os mecanismos das RAM, mas essas classificações não são totalmente satisfatórias. A maioria dos sistemas de classificação divide as RAM entre aquelas que ocorrem como resultado de uma extensão de um mecanismo farmacológico normal de um fármaco e aquelas totalmente aberrantes, em função de suas ações farmacológicas conhecidas. Todavia, muitas reações são colocadas na categoria de aberrantes simplesmente porque ainda não foram identificados os mecanismos de ação.

Um exemplo clássico de RAM que causou grande impacto na terapêutica ocorreu com o ácido
acetilsalicílico. Há cerca de 50 anos os medicamentos à base deste fármaco continham como advertência uma aberrante reação: alteravam o processo de coagulação sangüínea. Logo após, identificou-se o efeito do mesmo sobre a coagulação sanguínea e, assim, seu uso na cardiologia tem sido ampliado gradualmente. Hoje constitui indicação terapêutica específica independente da ação analgésica-antitérmica-antiinflamatória do fármaco.

A maioria dos fármacos possui várias ações farmacológicas, algumas das quais podem ser responsáveis, simultaneamente, por efeitos desejáveis e adversos. Embora o efeito produzido seja desejável ou indesejável, o mecanismo será o mesmo. Uma RAM pode também resultar em hipersensibilidade (ou alergia) a um fármaco e, geralmente, não é relacionada com a dose administrada. Reações imunológicas a fármacos resultam de anticorpos específicos ou de hipersensibilidade celular retardada e os efeitos adversos associados com alergia a fármacos são atribuídos largamente à liberação de mediadores químicos responsáveis por injúrias a tecidos.

Certas RAM a um determinado fármaco somente ocorrem se um paciente recebe outro fármaco que interage por meio da alteração da absorção, distribuição, metabolismo ou eliminação do primeiro. Este é o caso de uma interação fármaco-fármaco. Um EA constitui qualquer episódio clínico não intencional que se apresenta durante o tratamento com um produto farmacêutico, mas que não necessariamente possui relação causal com o referido tratamento. 

Os relatos de EA incluem a citação do medicamento (fármacos ou produtos biológicos), dispositivos médicos (incluindo produtos para diagnósticos in vit ro), produtos especiais para nutrição  suplementos dietéticos, alimentos médicos especiais ou fórmulas infantis) e outros produtos sujeitos à regulamentação sanitária.

Relatos espontâneos provenientes de médicos são sempre considerados relatos de suspeitas de reações a medicamentos em função de que o ato de comunicação de tal acontecimento, somente, sinaliza uma avaliação e conclusão de uma casualidade possível de acordo com o informante.
Há ainda relatos de Queixa Técnica (QT). Um relato de QT inclui problemas técnicos ou de não-conformidade do produto, relacionados com a qualidade, o desempenho ou a segurança. É passível de QT qualquer desvio na qualidade da substância ativa contida na especialidade farmacêutica (impurezas, teor etc.), nas características do medicamento (testes definidos por tipo de forma farmacêutica, estabilidade, contaminação microbiana e outras alterações), desvios na composição
de embalagem (falta de unidades ou de componentes) ou ainda problemas no desempenho dos mesmos.

Fatores predisponentes às Reações Adversas a Medicamentos (RAM)

Muitos fatores que supostamente predispõem os pacientes a efeitos adversos aos fármacos podem ser descritos. Se um paciente desenvolve uma reação adversa a um fármaco, ela depende da dose e da duração, da toxicidade inerente do agente e de outras características individuais tais como idade, gênero, genética, obediência ao regime de dosagem, doenças concorrentes e número total de medicamentos administrados. 

Os mais importantes fatores e suas características estão relacionados a seguir:
•    Farmacocinéticos - As características individuais que definem a absorção, a metabolização e a excreção de fármacos podem resultar em concentrações anormalmente elevadas do fármaco no organismo e em efeitos diferentes dos previstos. Inclui-se nesta categoria, por exemplo, os casos de elevação da concentração de antibióticos aminoglicosídeos em pacientes com deficiente filtração glomerular;
•    Fármacos - Os princípios ativos com baixos índices terapêuticos ou múltiplos efeitos farmacológicos são os que mais comumente apresentam RAM;
•    Idade dos pacientes - É considerado um fator predisponente que influencia a incidência de RAM. Um exemplo bem conhecido é o cloranfenicol, que produz a “síndrome de crianças cinzas” em neonatos, relacionada com o incompleto desenvolvimento do sistema enzimático do fígado em crianças. Os relatos de pessoas anciãs demonstram que a idade não é um fator independente de riscos de RAM;
•    Fatores hereditários - Demonstrou-se que alguns indivíduos podem ter sistemas enzimáticos alterados, os quais são responsáveis pela biotransformação de fármacos, alterações essas relacionadas com fatores genéticos. Exemplos destes fenômenos estão sendo relatados com fármacos conhecidos tais como a isoniazida, a succinilcolina, os inibidores da MAO, a dapsona, a sulfapiridina etc.;
•    Doenças - Pacientes doentes podem ter suas funções orgânicas alteradas e, em consequência, admite-se que a farmacocinética e a farmacodinâmica de muitos fármacos sofrem modificações.
•    As variações em respostas farmacológicas resultam de alterações da eliminação ou metabolismo ou podem ser afetadas por outros estados patológicos;
•    Uso de medicamentos simultâneos - A administração do tipo  “polifármacos”, muito usual em pessoas idosas e portadoras de problemas crônicos de saúde, assim como o uso sem orientação de produtos de venda livre, é identificada como a mais importante fonte responsável por relatos de RAM. 
Doenças induzidas por fármacos 

As RAM se refletem sob a forma de alterações em diferentes sistemas ou órgãos do corpo humano, dentre os quais se destacam: 
•    Reações dermatológicas - Podem ocorrer de forma aguda ou de desenvolvimento gradual. Desaparecem rapidamente ou lentamente após a descontinuação do agente responsável, ou ocorre em pacientes que utilizaram o medicamento sem qualquer identidade de problemas. As reações dermatológicas variam muito em relação ao local, à extensão e à severidade;
•    Doenças hepáticas - Sendo o fígado o local primário de transformação metabólica de fármacos e de outras substâncias estranhas ao organismo, admite-se que muitas destas substâncias provocam danos ao próprio órgão. As doenças hepáticas representam uma porcentagem relativamente reduzida do total de doenças induzidas por fármacos;
•    Doenças gastrintestinais - Sendo a via oral a mais comum na administração de medicamentos, espera-se que as reações gastrintestinais representem índices elevados de RAM. Destas, náusea e vômito estão entre as mais freqüentes, participando de índices que variam de 20 a 40% do total de todas as RAM; 
•    Desordens hematológicas - As desordens hematológicas resultantes de terapia medicamentosa são as que causam o maior impacto sobre a atenção aos problemas de enfermidades induzidas por fármacos e medicamentos. De todas as desordens hematológicas, a anemia aplástica é frequentemente relacionada aos medicamentos; 
•    Ototoxicidade - A ototoxicidade é resultante da terapia medicamentosa e manifesta-se por meio de distúrbios provocados na porção interna do ouvido afetado. Incluem-se entre os fenômenos de ototoxicidade a perda de audição e a vertigem. Alguns antibióticos aminoglicosídicos, como a estreptomicina, serviram de referência para os estudos relacionados com a perda gradual de audição provocada por terapia medicamentosa;
•    Toxicidade ocular - As RAM que se refletem sobre a visão são freqüentes. As principais manifestações relacionam-se com a produção da lágrima, cuja secreção é controlada por inervações tanto do sistema simpatomimético quanto parassimpático. Outros problemas incluem visão turva, retinopatias, depósitos de fármacos na córnea e alteração da pressão ocular;
•    Doenças pulmonares - Segundo pesquisadores, as doenças pulmonares induzidas por medicamentos estão aumentando em freqüência. Broncoconstrição e asma são consideradas as reações pulmonares que mais ocorrem em consequência de uma grande variedade de fármacos. Outras RAM estão relacionadas a fibrose, toxicidade pulmonar e alveolites;
•    Doenças renais - Dentre as doenças renais, a falha renal aguda é aquela freqüentemente
correlacionada com nefrotoxinas e fármacos. Outros danos renais, tais como nefrotoxicidade
e nefrites, relacionam-se com uma extensa lista de fármacos utilizados na terapêutica;
•    Efeitos teratogênicos - Os efeitos teratogênicos incluem-se nas RAM, pois ocorrem não somente em pacientes aos quais foram administrados mas também a fetos. A tragédia da talidomida representou um marco na história da medicina, possibilitando a identificação dos componentes que induzem a formações congênitas anormais, se administrado no período da organogênese, compreendido entre o 13º e 56º dias de gravidez. 

Modelos existentes de farmacovigilância 
Council for International Organizations of Medical Siences (CIOMS), European Medicines 
Agency (EMEA), MedWatch/Food and Drug Administration (FDA)


O CIOMS focaliza os Efeitos Adversos à Medicação (EAM), com foco principal nas suspeitas de RAM, estabelecendo um fluxo de informações por meio de formulários, oriundos de médicos e das indústrias farmacêuticas para os Centros Nacionais e destes para Uppsala, na Suécia, com retorno dos dados processados aos informantes. O Centro de Assistência Toxicológica (CEATOX) do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (ICr-HCFMUSP) foi o primeiro órgão representante da OMS no Brasil, desempenhando o papel de Centro Nacional de Farmacovigilância e encarregando-se da coleta de informações das RAM.

Atualmente a ANVISA, com base na RDC nº 04/2009, centraliza a coleta dos dados e interage com o
referido órgão, bem como com os parceiros do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). A European Medicines Agency (EMEA) disciplina a farmacovigilância em seus estados membros por meio das diretivas do Council Regulation (EEC) nº 2309/93, EEC 540/95 e EEC 2001/83, as quais estão em plena consonância com o CIOMS. Sendo uma sistemática mais recente, o modelo da EMEA é o mais abrangente e coerente com os propósitos atuais. 

O modelo MedWatch da Food and Drug Administration (FDA) focaliza com destaque os EA em lugar das RAM do modelo da OMS. A sistemática da MedWatch/FDA, tendo como foco os EA, tem objetivos mais amplos. 

Além das suspeitas em relação às reações adversas aos fármacos e medicamentos, os eventos adversos abrangem também outros fatores (dispositivos médicos, agentes para diagnósticos, suplementos alimentares e outros produtos sob controle da FDA), assim como os procedimentos.

Convergência dos modelos

Em cada modelo citado consta o compromisso atribuído aos informantes de relatar as suspeitas
de RAM ou de EA às autoridades sanitárias e ao fabricante do produto sobre o qual recai a suspeita de um efeito não previsto ou aberrante. Os informantes devem ser plenamente identificados e qualificados, podendo ser acessados posteriormente, caso seja necessário. Constam também nos formulários, dentre outros detalhes, a completa identificação do paciente, do fabricante, do produto suspeito e do correspondente lote, a severidade da RAM ou EA, a cronologia, a evolução do estado de saúde do paciente e a suposta causa, de acordo com o informante.

A elaboração de relatos pelo notificador e o envio dos mesmos aos órgãos de vigilância sanitária estão sendo gradualmente definidos, não havendo harmonização internacional. Enquanto os modelos da OMS e da FDA são considerados voluntários, no modelo da EMEA essas atividades são consideradas obrigatórias. Também é objeto de normativas independentes o envio dos relatos às autoridades sanitárias, com prazos diferenciados em função da gravidade do caso, do tempo e/ou do local de comercialização do produto, assim como dos relatos apontados na literatura especializada.

Visão geral do sistema de farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)

O modelo recém-adotado apresenta-se coerente com as recomendações da OMS, está claramente definido e estruturado e contém as descrições de responsabilidades e o estabelecimento de penalidades. Como todo modelo de boas práticas, o sistema estabelece a obrigatoriedade da gestão e a adoção  de ferramentais gerenciais.

Está explicitado que as empresas industriais farmacêuticas, além da necessidade de indicar um responsável pelo gerenciamento do sistema de farmacovigilância, devem estruturar uma comissão interna responsável pela coleta dos dados, apuração e avaliação das prováveis causas das RAM e EA, realização de auto-inspeção, gerenciamento e disponibilização das informações, dentre outras. Desta forma, a Comissão Interna de Farmacovigilância (CIFV) realizará auto-inspeções para assegurar o cumprimento da legislação vigente e a proteção da saúde pública.

Boas Práticas de Farmacovigilância (BPFV) e Boas Práticas de Fabricaçãoe Controle (BPFC)

O capítulo das Boas Práticas de Fabricação e Controle (BPFC) que trata da farmacovigilância é aquele relacionado aos procedimentos re ferentes às reclamações, devoluções e recolhimento de produtos. É considerada imprescindível, nas empresas industriais farmacêuticas, a existência de procedimentos operacionais escritos e padronizados, que definam os critérios de:
•    Registro de lotes distribuídos, com análise do recolhimento dos mesmos, se necessário;
•    Recebimento de reclamações de clientes e pacientes;
•    Recolhimento de produtos; 
•    Recebimento de devoluções.

O termo “recolhimento de produtos”, em língua portuguesa, tem sido tratado de forma confusa, ora com sentido de recolhimento compulsório em face de problemas relacionados ao desempenho terapêutico, toxicológico ou de qualidade, ora com o de retirada voluntária de produtos que não oferecem risco aos pacientes, por razões de estratégia ou política da empresa.

As atividades, nas empresas produtoras, relacionadas com as reclamações de profissionais da saúde ou de pacientes sobre os medicamentos industrializados, são multidisciplinares, envolvendo o pessoal de campo, os especialistas da área médica-marketing, profissionais que trabalham com registros e profissionais da área tecnológica científica (desenvolvimento tecnológico, controle de qualidade, produção e segurança da qualidade). 

Responsabilidade pela farmacovigilância
A publicação da RDC nº 04/2009, de 10/02/2009, que dispõe sobre as BPFV de medicamentos de uso humano e sobre diversas discussões acerca de tecnovigilância, ou seja, a vigilância de produtos para a saúde, demonstra a preocupação com a disponibilização de tratamentos mais seguros e efetivos aos pacientes. Desta forma, a farmacovigilância tornou-se um componente essencial na regulação de medicamentos. 

A decisão de aprovar um medicamento baseia-se no equilíbrio satisfatório de benefícios e riscos dentro das condições especificadas na bula do produto, com base nas informações disponíveis no momento da aprovação. O conhecimento relacionado ao perfil de segurança do produto pode ser alterado ao se aumentar a quantidade de pacientes expostos. Em particular, durante o período inicial de pós-comercialização, uma população muito maior pode ser exposta em um período relativamente curto. 

O produto, ao ser comercializado, gera novas informações, o que causa impacto sobre os benefícios ou riscos do produto. A avaliação desta informação é um processo contínuo, em conjunto com as autoridades regulatórias. A elaboração de um Plano de Farmacovigilância, que englobe o planejamento das atividades durante todo o ciclo de vida de um produto, objetiva assegurar sua utilização. Para os produtos em que não se evidenciem preocupações especiais, a farmacovigilância
de rotina deve ser suficiente para o monitoramento de segurança pósaprovação, sem a necessidade de medidas adicionais (por exemplo, estudos de segurança). 

As BPFV devem ser conduzidas para todos os produtos medicinais e incluem:
•    Sistemas e processos que assegurem que todas as informações de possíveis EA sejam coletadas
•    e listadas de forma acessível;
•    Preparação de relatórios para as autoridades reguladoras (Relatório Periódico de Farmacovigilância);
•    Monitoramento contínuo do perfil de segurança dos produtos aprovados, incluindo detecção de sinal, atualização da bula e comunicação às autoridades sanitárias;
•    Competem ao responsável da farmacovigilância as seguintes atribuições:
- Estabelecer e gerenciar um sistema que assegure que as informações de todas as suspeitas de RAM e EA, reportadas à empresa, sejam registradas, respeitando-se a confidencialidade;
- Comunicar qualquer informação relevante relacionada aos riscos e benefícios adicionais de um medicamento, incluindo informação apropriada dos estudos de segurança pós-comercialização;
- Arquivar, sistematicamente, as notificações, possibilitando sua rastreabilidade e acesso rápido às informações. Estes arquivos físicos e eletrônicos devem ser mantidos por 20 anos, no mínimo;
- Elaborar o Relatório Periódico de Farmacovigilância e encaminhá-lo ao órgão regulador;
- Estruturar e coordenar as atividades relacionadas ao recebimento das reclamações ou informações de RAM ou EA, comprovação das conformidades técnicas, apuração da causalidade, inclusão de advertência ou esclarecimentos nas bulas, alteração de registro e inclusive aquelas relacionadas ao recolhimento de produtos;
- Elaborar um Plano de Minimização de Risco, caso necessário.

Visão de futuro

A farmacovigilância é uma disciplina complexa, que está em pleno desenvolvimento. Alguns pontos ainda não estão completamente harmonizados, tais como a nomenclatura, os tipos de adversidades, o relato em si em sua forma e conteúdo, o informante, a obrigatoriedade de informação, a avaliação da causalidade, a correlação com o processo evolutivo do paciente, além das penalidades àqueles que descumprirem as normas da regulamentação.

Em relação aos informantes, não existe uma definição clara de quem pode e quem deve relatar.
Evidentemente, somente valerá o relato elaborado por um profissional qualificado, relato este que ainda não está claramente definido se é compulsório ou facultativo. Os modelos de relatórios dos órgãos internacionais contêm itens e formatação diferentes, necessitando de harmonização inclusive quanto à disponibilização de modelo eletrônico.

A suspeita de causalidade de RAM ou de EA, em geral deduzida, nem sempre é comprovada por um método objetivo. Isto faz com que as suspeitas sejam consideradas como verdadeiras, pois a comprovação de uma provável causa será muito onerosa ou difícil de se esclarecer. Soma-se ainda aos problemas relacionados à severidade e à frequência da duração dos efeitos adversos, os quais são correlacionados ao processo evolutivo do paciente. 

Quanto às responsabilidades, parece evidente que os médicos e os farmacêuticos são os profissionais que devem atuar, de forma interativa, com a empresa detentora do registro do medicamento, como informantes na caracterização da suspeita de causalidade, nos casos que ocorrem nos referidos estabelecimentos - os médicos nos casos de medicamentos prescritos em seus consultórios e clínicas e os farmacêuticos nos casos de Medicamentos Isentos de Prescrição (MIP) em farmácias.

Mesmo diante da complexidade constatada, espera-se que se construa, rapidamente, um procedimento internacional completamente harmonizado para caracterizar especificamente os efeitos adversos aos medicamentos, oferecendo-se medicamentos com menor risco e, consequentemente, maior segurança aos pacientes. 


Publicado na revista Fármacos & Medicamentos 59 (Julho/Agosto/Setembro 2009)

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