Formas Farmacêuticas em Pediatria: Um Desafio
A pediatria sempre foi um dos maiores desafios para o farmacêutico hospitalar, especialmente para o farmacêutico clínico.
No arsenal terapêutico atual, está disponibilizada uma variedade de formas farmacêuticas e de apresentações que permitem o atendimento da grande maioria dos pacientes internados e ambulatoriais. Entretanto, parte desses pacientes encontra-se ‘órfão terapêutico’ no que se refere a apresentações capazes de atender as suas necessidades e da equipe multidisciplinar, considerado, assim, pela primeira vez, na década de 1960. Desses, além dos pacientes pediátricos, pode-se destacar alguns casos típicos no ambiente hospitalar como: pacientes portadores de sondas nasogástrica ou nasoenteral, pacientes com dificuldade de deglutição, dentre outros que apresentam qualquer impedimento de utilização da via fisiológica para administração de medicamentos. É importante destacar que não se refere, nesse momento, a pacientes pediátricos, mas de uma população significativa de adultos e idosos que também acabam por integrar esse grupo de ‘órfãos’ em termos de apresentações/formas farmacêuticas.
Ao se observar o assunto sob esse aspecto, levanta-se uma questão que tem sido motivo de discussão em todo o mundo, principalmente no que se refere à população pediátrica, considerando-se que a carência de apresentações e de estudos relativos à utilização de alguns fármacos para essa população é um problema não apenas brasileiro, mas também internacional.
Há questionamentos como: Os pacientes estão sendo atendidos de forma adequada e segura nas mais diversas condições clínicas com o atual arsenal farmacêutico? A carência de especialidades farmacêuticas adequadas para o uso em pediatria pode ser um fator importante de risco de reações adversas, falhas terapêuticas e intoxicações?
Ao contrário do que se possa pensar, a criança não é um ‘adulto pequeno’, pois a população pediátrica apresenta composição corporal e órgãos em diferentes estágios de desenvolvimento em relação às demais faixas etárias.
A prática demonstra que, embora sejam utilizadas na prática clínica, apenas uma parcela dos medicamentos produzidos apresenta indicações para a utilização pediátrica. Portanto, o problema não se restringe apenas às formulações, mas também ao cálculo da dose e indicação. Como o cálculo da dose pediátrica é individualizada, considerando-se parâmetros da criança, fase do desenvolvimento e condições fisiopatológicas, a forma farmacêutica deveria acompanhar essa necessidade. Pode-se concluir que a disponibilidade de formas farmacêuticas adequadas permite uma farmacoterapêutica mais segura. Segundo o European Network for Drug Investigation in Children, em 2/3 da população pediátrica são administrados medicamentos que não apresentam indicações específicas para uso pediátrico. A Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou, em 2007, uma lista de medicamentos essenciais para as crianças. O trabalho conta também com um levantamento muito importante apontando para a necessidade de pesquisas em todo o mundo. A OMS, com esse trabalho, chama a atenção mundial para esse tema com a campanha Make Medicine Child Size, uma tentativa de despertar todos os evolvidos para o problema.
Portanto, como medicar uma criança com um fármaco cuja única apresentação é uma forma farmacêutica sólida ou se líquida, sua concentração exige diluições? É consenso, entre os profissionais de saúde, que as formas farmacêuticas líquidas, em especial as soluções e as suspensões orais, constituem as mais adequadas para uso em pediatria, pois além de facilitarem a administração e poderem contribuir para a adesão dos pacientes à terapêutica, apresentam grande flexibilidade, permitindo ajustar, de um modo simples e rápido, as doses a administrar durante o tratamento, em função da evolução da patologia e do desenvolvimento da criança.
Essa pergunta acompanha os farmacêuticos hospitalares há muitos anos e a resposta nasceu concomitantemente a Farmacotécnica Adaptativa, atividade típica realizada em farmácias de hospitais que adotam o Sistema de Dispensação por Dose Unitária ou Individualizada. Entretanto, sabe-se que no Brasil, a maioria dos hospitais não adota esse sistema de distribuição. Sistema que permite economia de medicamentos e o mais importante, segurança farmacoterapêutica. A ausência de farmácias hospitalares equipadas com um setor de farmacotécnica se caracteriza como um fator limitante na manipulação das formas farmacêuticas em condições adequadas e faz retornar à questão inicial. A falta de formas farmacêuticas adequadas aos pacientes pediátricos que possam ser manipulados com segurança pela equipe de enfermagem ou mesmo em casa nos tratamentos ambulatoriais.
Mas como a adaptação das formas farmacêuticas é realizada? A resposta pode parecer simples, mas é uma atividade de alta complexidade, responsabilidade e conhecimento do farmacêutico e equipe, e exige uma infraestrutura especifica.
Em se tratando de formas farmacêuticas sólidas, comprimidos ou cápsulas, considerando-se que muitos fármacos utilizados na terapêutica são apresentados apenas nessa forma, exigem adaptação para a forma líquida, como soluções extemporâneas que podem ser preparadas na própria farmácia hospitalar ou, eventualmente por uma farmácia de manipulação devidamente credenciada e que atenda às Boas Práticas de Manipulação. Ou seja, é necessário transformar um ‘comprimido em um líquido’. Cabe salientar que muitas formas farmacêuticas não podem ser fracionadas como formas de liberação prolongada, retardada, entérica dentre outras, o que normalmente se caracteriza como uma limitação terapêutica. Outras alternativas caracterizam-se pela trituração dos comprimidos, cuja correlação massa/princípio ativo deverá ser calculada. O pó é acondicionado adequadamente para posterior dispersão em um líquido ou alimento. Encapsulamento de pós obtidos de comprimidos triturados ou pelo esvaziamento de cápsulas também é uma alternativa. Fica claro que se faz necessário ao farmacêutico hospitalar conhecer profundamente a forma farmacêutica com a qual está trabalhando. Conhecer também a literatura disponível sobre o tema é essencial, pois este é um problema mundial, muitos trabalhos têm sido realizados com o objetivo de proporcionar informações seguras quanto à adaptação de formas farmacêuticas. Além disso, algumas formas líquidas apresentam-se em concentrações altas e exigem diluições para atender os pacientes de baixo peso como neonatos e prematuros, em especial os prematuros extremos. Para esses pacientes, o mesmo será necessário para os injetáveis. Observa-se uma questão bastante complexa. Por mais que o trabalho adaptativo seja realizado por profissionais qualificados, existe um risco inerente ao processo.
A carência de formas farmacêuticas apropriadas para as crianças gera outra questão. Sendo necessária a adaptação da forma farmacêutica industrializada, conhecer o produto é fundamental. Mas, para isso, a informação deve, ou deveria, estar disponível para essa adaptação. Informação essa que nem sempre é facilmente disponibilizada pela indústria farmacêutica ou mesmo constante em bula. Exemplo interessante com o qual o farmacêutico sempre se depara é o caso do comprimido revestido. Revestido por qual motivo? Sabe-se que o revestimento é utilizado por diversas razões. Sabe-se também que o uso ambulatorial exige cuidados extras em função das diversas possibilidades do paciente comprometer a integridade da forma farmacêutica e comprometer a terapêutica. No caso do uso hospitalar, o conhecimento do comportamento do fármaco, características físico-químicas e das formas farmacêuticas, habilita o farmacêutico em relação à tomada de decisão quanto à adaptação da forma farmacêutica conforme a necessidade da terapêutica prescrita. Até mesmo os excipientes e adjuvantes farmacotécnicos passam a ser uma preocupação, pois os mesmos podem causar problemas na população pediátrica. A ausência ou a dificuldade de obtenção da mesma compromete uma terapêutica segura e confiável. Comprometendo o sucesso do tratamento, compromete-se paciente.
É fundamental salientar que a legislação brasileira - Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 33 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) -, permite ao farmacêutico transformar especialidade farmacêutica, quando da indisponibilidade da matéria-prima no mercado e na ausência da especialidade na dose e concentração e/ou forma farmacêutica compatíveis com as condições clínicas do paciente, de forma, a adequá-la à prescrição seguindo as diretrizes preconizadas pela RDC nº 67 da ANVISA, que dispõe sobre Boas Práticas de Manipulação de Preparações Magistrais e Oficinais para Uso Humano em farmácias. Todas essas medidas visam garantir a qualidade e segurança dos medicamentos, que por ventura, sejam manipulados na unidade hospitalar ou em uma farmácia de manipulação que atenda esse hospital.
Para ilustrar, o Quadro 1 apresenta alguns exemplos de fármacos rotineiramente utilizados em crianças, especialmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), indisponíveis em formas farmacêuticas apropriadas para crianças no Brasil.
Desse modo, conclui-se que investimentos no desenvolvimento de produtos direcionados à pediatria são fundamentais, permitindo que os profissionais de saúde possam lançar mão do arsenal terapêutico com qualidade e segurança. Sabendo-se dos diversos cenários que compõe a indústria farmacêutica no Brasil e mundial e sabendo-se que mesmo com o desenvolvimento de um número maior especialidades voltadas para o público infantil, a necessidade de manipulação na farmácia hospitalar sempre ocorrerá. Assim, a parceria farmacêutico hospitalar e indústria necessita ser aprimorada e consolidada,possibilitando um trabalho conjunto cujo resultado reflete diretamente no paciente, no caso, uma criança.
Publicado na revista Fármacos & Medicamentos 66 (Julho/Agosto/Setembro 2011)
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